K4

Arsénia Valdeste

Luís Tiago acordou atribulado. Virou-se e esticou as pernas, esbarrando em algo metálico. Num abrir de olhos viu o carrinho com instrumentos de otorrino mover-se vagarosamente na direção da porta. Ainda tentou regressar ao inconsciente onde entrava Vanessa, mas o coração palpitante deu a entender que não voltaria a adormecer tão cedo. A bela enfermeira, integrada no internamento há cerca de três meses, começava a ser uma presença assídua nas viagens oníricas do médico. 

Voltou a sonhar com a biblioteca da universidade. Passava lá dias inteiros a estudar para o exame de acesso à especialidade, ia repetí-lo pelo terceiro ano consecutivo. Ser dermatologista era um objetivo de vida e qualquer outro cenário estava descartado. Levantou os olhos dos Princípios de Medicina Interna e reparou em Vanessa, sentada mesmo à sua frente, acarinhando com o ondulado cabelo uns apontamentos cheios de cores e diagramas enovelados. Ela apanhou o seu olhar, sorriu e perguntou: “Dose de adrenalina numa paragem cardiorrespiratória?” Luís Tiago puxou pela memória, tentou lembrar-se da página onde isso vinha escrito e lá acabou por acordar. Não tinha qualquer sentido. Isso nem sequer fazia parte da avaliação. 

Olhou para o telemóvel. Quatro da manhã, quatro chamadas perdidas do internamento. Maldito modo silencioso. 

Enquanto vestia a farda, alguém bateu à porta. Soou a voz da Dona Bina:

– Senhor Doutor, venha rápido. É a K4!

Seguiu com passadas largas e rápidas a correria da auxiliar de ação médica. Manter a calma, o que é preciso é manter a calma, repetia como uma mantra. Fazia turnos como clínico geral há quase dois anos e poucas vezes fora chamado ao internamento à noite. Normalmente tudo se resolvia com uma ou outra prescrição simples. E agora não iria passar disso. K4 não é um tipo de caiáque que compete nos Jogos Olímpicos? É esse o espírito.

O quarto ao fundo do corredor era o único com as luzes acesas. Por trás da cortina que o dividia a meio, duas enfermeiras estavam em volta da cama K4 sob o olhar atento da velhota acordada ao lado. Patrícia, já sem idade para estas andanças noturnas, fazia compressões torácicas ao obeso corpo, inconsciente e pálido. Vanessa, por sua vez, assegurava a via aérea através de um insuflador manual.

Luís Tiago decidiu palpar o pulso da doente.

– Está há mais de cinco minutos em paragem, doutor – balbuciou Patrícia.

O médico afastou os dedos. Não sabia bem o que fazer.

– Encontraram-na assim, foi? — perguntou depois de alguma hesitação.

– A senhora tocou a campainha de emergência – respondeu Vanessa, pressionando ao mesmo tempo a bolsa do insuflador. – Só pode ter sido ela, as vizinhas do quarto estavam a dormir. Quando cheguei, já não respirava nem reagia. Chamei por ajuda. A Gorete foi logo buscar o desfibrilhador. A Patrícia e a Dona Bina iniciaram manobras, enquanto eu lhe ligava a si e ao 112. Você não atendeu e em Coimbra responderam “viatura médica indisponível”.

– Indisponível? – repetiu o médico, lamentando o facto de a enfermeira ter usado o telemóvel de serviço e não o pessoal. E por que é que Bina era antecedido de dona e Gorete não, quando as duas pareciam ter a mesma idade? Pensava em tudo, menos no elefante que tinha no quarto. 

– Vai intubar, doutor? – perguntou Vanessa.

– Já fiz no boneco, mas não estou à vontade para fazê-lo numa pessoa – mentiu o médico.

Luís Tiago ficava impressionado só de ver os anestesistas enfiar nos doentes aqueles tubos laringe abaixo. Faltara à aula prática de via aérea avançada nos tempos da faculdade por não ver qualquer utilidade nisso para a sua futura vida de dermatologista. E assim seria, tivesse tirado a nota necessária para entrar na dita especialidade.

– Já passaram dois minutos – interveio Patrícia. – Vamos trocar.

As enfermeiras efetuaram o roque. Luís Tiago não se mexeu. Atónito, observava Vanessa a aplicar rítmicas propulsões à caixa torácica inanimada. Do alto da sua posição ereta, o médico conseguia ver pela gola em V as oscilações do sutiã vermelho da enfermeira. Não condizia com a farda azul-bebé da mesma maneira que Luís não harmoniza com Tiago. Claro que não era dele a culpa. Luís era a escolha da mãe, o pai insistia em Tiago, o resultado foi o que foi. Já Vanessa não tivera escolha. Adiava o dia de lavandaria há uma semana, pois praticamente não saía do hospital. 

A indisponibilidade da equipa médica de emergência obrigava o clínico de serviço a tomar decisões. Assim era em teoria. Na prática, Luís Tiago estava com uma branca em termos do algoritmo de suporte básico de vida, o único aprendido na faculdade. O hospital exigia o curso de suporte avançado, mas fora contratado à pressa para suprir a falta de médicos e lá se facilitou. Ficou combinado fazer o curso assim que possível, só que desde então não se voltou a tocar no assunto.

Gorete acabava de entrar no quarto com o carrinho do desfibrilhador.

– Estava mesmo lá em baixo – disse pelo meio da sua respiração ofegante.

Chegou a hora do médico agir. Puxou o aparelho para a cabeceira da cama e ficou a olhar para a quantidade de botões e interruptores: só faltava descobrir como ligar aquilo…

– Se não sabe mexer nisso, venha para aqui – bramou Vanessa.

Resignado, Luís Tiago obedeceu, ocupando o lugar nas compressões, enquanto a enfermeira ligava o desfibrilhador e acertava as configurações. Foi tudo tão repentino, que Patrícia até se esqueceu de ventilar a doente por breves instantes.

***

Vanessa deixava de ser a mesma mal o jovem médico punha os pés no internamento. Discutia com as colegas, criticava a enfermeira-chefe e perdia a paciência com alguns doentes. A razão era simples. Enquanto o jogo de olhares do Dr. Luís errava o alvo, o serviço inteiro não falava de outra coisa. Comentários inocentes passaram a insuportáveis: “o doutor andava à procura de uma enfermeira e até sei de qual”, “aproveita para ir jantar, Vanessa, que vais ter companhia na copa”, “vai lá avisar o Dr. Luís para se levantar cedo, que às oito chega o otorrino”. Vanessa não estava para conspirações, mas admitia que o médico mudava de discurso quando ficavam a sós. Até sugeriu para se tratarem por “tu”. Segundo ele, uma maior proximidade da equipa de enfermagem permitiria otimizar a dinâmica de trabalho.

O que Vanessa sentia pelo médico, ninguém conseguia entender. Às tantas nem ela própria. Simpatia não era. Fazia-lhe confusão a maneira arrogante como o Dr. Luís tratava as auxiliares e algumas enfermeiras. Não que tivesse visto, mas sabia-o das conversas de corredor. Contava-se também que o doutor nem sempre vinha quando era chamado. A solução pecou pela trivialidade. Bastava ser Vanessa a ligar, que ele aparecia num instante.

Dr. Luís era claramente estudioso, gostando de atirar com diagnósticos diferenciais e brilhar com percentagens associadas. Bem-parecido de feições, raramente faltava ao ginásio. Estava no início da carreira e já vinha para o hospital num airoso desportivo. Mais importante que isso, representava uma classe da qual Vanessa sempre quis fazer parte. Duas décimas afastaram-na da Medicina na Covilhã e essa ferida nunca sarou. Havia um plano secreto de um dia voltar a concorrer, mas faltava ganhar coragem para largar tudo e começar do zero.

Estes pensamentos inúteis tornaram a atulhar a mente de Vanessa assim que Dr. Luís entrou na sala. Bem tentava focar-se no que era preciso, mas não estava fácil. 

Assim que colocou os elétrodos no corpo inerte, Vanessa procurou o médico com o olhar. Dr. Luís compreendeu o que tinha a fazer e aproveitou para recuperar o comando perdido:

– É melhor pararmos para a enfermeira analisar o ritmo.

Dito isto afastou-se. Patrícia seguiu o seu exemplo. Vanessa pegou nas pás de desfibrilhação e apoiou-as no tronco da mulher. O monitor mostrou um traçado retilíneo. A enfermeira rodou um botão no painel de controlo e voltou a encostar o metal aos elétrodos. Não, não era uma questão de sinal.

– Vamos chocar – disse o médico.

– Não tem ritmo, doutor – respondeu Vanessa sem elevar a voz.

Só se passa corrente elétrica quando há um ritmo desfibrilhável – disso Vanessa lembrava-se bem. Dr. Luís parecia ainda mais confuso.

– Posso não saber ligar o aparelho, mas ainda sou eu que mando aqui – disse ele, esforçando-se por manter uma firmeza na voz. – Não se perde nada em chocar. Pior do que está, a mulher não fica. 

– Você é que sabe – conformou-se Vanessa. – Duzentos joules?

Dr. Luís acenou com a cabeça. A enfermeira mandou toda a gente afastar, carregou o desfibrilhador, encostou as pás e administrou o choque. A retilinearidade do traçado manteve-se.

– Dona Bina, venha para aqui e comece já as compressões – mandou o médico. – Já a enfermeira Vanessa pode descansar um pouco – disse ele, mantendo as formalidades na presença de terceiros. – Agora fico eu no desfibrilhador.

– É para preparar adrenalina? – lembrou-se Vanessa. – A senhora já tem acesso.

– Ah? Sim… Claro – concordou o médico. – Na dose de paragem cardiorrespiratória.

Ao contrário da sósia sonial, Vanessa sabia na ponta da língua as doses de adrenalina nas diferentes situações agudas. Aos seus escassos vinte e cinco, já tinha diplomas de suporte avançado de vida para adultos, crianças e em contexto de trauma. Pagara-os do seu bolso, e não tinham sido baratos. Davam pontos capitais na apertada concorrência às mal remuneradas e mesmo assim escassas vagas de enfermagem. Além disso, considerava-os imprescindíveis para profissionais de saúde em unidades sem emergência médica disponível. 

Ao preparar a medicação, Vanessa martirizava-se por não ter arriscado a entubação da traqueia. Vistas bem as coisas, tratava-se de um procedimento que requeria experiência e ela nunca tivera oportunidade de praticar. Eram sempre os médicos que faziam isso e ela tinha de se ocupar das “suas obrigações diretas”.

– Um miligrama de adrenalina administrado, doutor.  

Sem surpresa, a medicação não surtiu qualquer efeito. Já as hierarquias voltaram a ser respeitadas, após um estranho, ainda que curto período de turbulência.

***

O quarto K assistiu a uma boa dúzia de ciclos em que se chocava ou se dava adrenalina a cada dois minutos, uma autêntica tortura do há muito defunto corpo de K4. Luís Tiago comandava as operações e as mulheres às suas ordens limitavam-se a cumprir o que lhes era dito, mudando sucessivamente de lugar. Entretanto o segurança do hospital também se tinha juntado ao lote de espectadores.

– Até quando é suposto continuarmos? — perguntou o médico ao ver uma gota de suor escorrer pelo lótus tatuado no antebraço de Vanessa, essa cicatriz subcutânea que para ele não fazia qualquer sentido.

– Até o doutor mandar parar – respondeu ela sem sequer olhar para ele.

– Certo – concluiu o clínico. – Vamos então ficar por aqui.

As manobras de reanimação foram imediatamente cessadas e instalou-se o silêncio. Gorete apressou-se a cobrir o corpo com um lençol. 

Vanessa saiu do quarto sem dizer palavra. Patrícia informou que tinha de se ausentar e tentou seguir a colega, quando foi interpelada por Luís Tiago.

– Preciso de escrever no diário da doente, não é? – perguntou ele.

– Não só. Tem de passar a certidão de óbito e ligar à família – respondeu Patrícia ao mesmo tempo que pegava no dossiê em cima da mesinha de cabeceira. – Tem aqui o processo da doente com toda a informação necessária.

– Por acaso nunca emiti uma certidão de óbito.

– Há uma primeira vez para tudo.

Luís Tiago pegou na capa e passou os olhos pelo cabeçalho do processo clínico.

– Bom, ela também já tinha oitenta e três, não era propriamente menina – concluiu ao subtrair a data de nascimento.

– Por acaso estava ótima para ir embora – comentou Patrícia. – A filha vinha buscá-la amanhã de manhã. 

O médico não entendia este tom. Agora era dele a culpa da doente ter falecido? A taxa de sobrevivência a uma paragem intra-hospitalar é inferior a 25% e isto nem sequer é um hospital de doentes agudos! Sim, foi uma reanimação atrapalhada, no entanto, chocaram e deram a medicação que era preciso. Não se colocou via aérea avançada por falta de experiência, só que isso em nada teria mudado o desfecho. Que mais queriam? Se demorou a mandar parar as manobras, foi porque esperava que a viatura médica viesse. Já agora, era preciso esclarecer essa resposta da central. Não havendo ambulância disponível, teria de vir de outro lado.

– Pronto, doutor, se não se importa, eu só vou num instantinho ao WC – absorvido nos pensamentos, Luís Tiago esqueceu-se que Patrícia ainda estava aí. – Vemo-nos na nossa salinha – completou ela e sumiu.

O clínico dirigiu-se para o gabinete das enfermeiras e, após ter esperado uns bons minutos que o computador ligasse, começou a preencher a certidão de óbito digital. Aquilo pedia muitas informações, algumas não constavam no processo. E as enfermeiras nunca mais vinham. Qual é o interesse de colocar o estado civil e a profissão num documento clínico de alguém morto? Viúva doméstica, quase de certeza. Se não for, alguém há-de corrigir. Causa de morte? Paragem cardiorrespiratória. Problemas que antecederam o desfecho fatal? Caramba, era preciso ver os registos clínicos. Aquilo ainda ia demorar.

***

Entretanto Vanessa foi fazer a ronda pela sua ala do internamento. Já tinha respirado a frescura da noite e preparado mentalmente o que iria expôr à enfermeira-chefe de manhã. O desfibrilhador estava longe, a gaveta do carrinho de emergência não abriu e só uma das auxiliares sabia fazer suporte básico de vida. E quanto à falta de preparação dos elementos do corpo clínico, deveria dizer algo? Se calhar não. O Dr. Luís tinha noção do que se passou e falaria ele próprio do assunto ao diretor de serviço. 

Ao regressar à salinha, encontrou o médico ao computador. Estava com um ar sério, bem diferente da prostração exibida no quarto K. 

– Excelentíssima – começou ele de forma estranhamente fria – quer explicar-me por que razão não administraram ontem enoxaparina à K4? 

– Foi o seu colega que suspendeu a profilaxia antitrombótica – respondeu Vanessa. – A senhora já deambulava sem andarilho há duas semanas. Além disso, teve um AVC hemorrágico no passado. Como ia ter alta, o médico optou por se parar com as injeções.

– Isso é tudo muito bonito. Ainda assim, é preciso aplicar os scores e fundamentar tudo por escrito. Não encontrei nada disso no processo. Depois temos os doentes a fazer tromboembolismos pulmonares. 

– É ao seu colega e não a mim que deve dirigir essas críticas.

– Justo. E onde estava a enfermeira que sabe mais que os outros e contesta decisões dos superiores, quando isso poderia ter salvado uma vida?

Sem resposta, o médico saboreou cada instante da pausa que se seguiu.

Saber muito, Vanessa sabia. Uma das melhores no curso, absorvia com facilidade tudo o que lhe ensinavam. E o que não ensinavam, ela própria aprofundava com avidez. Um ano de trabalho no Serviço de Urgência dera-lhe uma bagagem enorme, reforçando a sua confiança. Isso refletia-se no desprezo que tinha pela enfermeira-chefe do internamento, uma colega já perto da reforma sem vontade para se chatear. Os médicos também sentiam na pele o seu atrevimento. Vanessa não tinha problemas em questionar decisões clínicas e pouco ou nada se importava com o desconforto que isso poderia causar.

– Não concorda, senhora enfermeira? – insistiu o médico.

Vanessa já o tinha visto assim, mas quando? Horas antes, nem mais. Um episódio que parecia agora infinitamente distante. Estava ela a entrar de serviço e o Dr. Luís apanhou-a sozinha no corredor. Nem olá, nem nada. “E nós?” – perguntou ele. “Existe um nós?” – respondeu ela. Naquele breve instante em que o racional deixa de fazer sentido, estava pronta a aceitar o que viesse a seguir. Com o coração aos pulos, esperou, esperou… E nada aconteceu. O médico apenas sorriu, desaparecendo na escuridão das escadas. 

Vanessa sentiu novamente a pulsação a disparar. Deu uma volta sobre si própria e saiu da sala, fechando a porta com estrondo.

***

Luís Tiago sabia perfeitamente que a enfermeira não tinha culpa nenhuma. E quanto ao medicamento suspenso, ele teria feito exatamente o mesmo que o colega. 

Um ligeiro sobressalto percorreu-o quando bateram à porta da sala de enfermagem. Afinal era só a Patrícia.

– Estou mesmo a ultimar a certidão – disse ele.

– Muito bem – respondeu a enfermeira. – Já ligou à família?

– A esta hora? Isso não faz qualquer sentido. Liga-se de manhã. Além disso, vocês podem perfeitamente fazê-lo. Ao contrário de mim, chegaram a conhecer a doente em vida.

– Eu vou passar essa informação à colega, mas normalmente são os médicos que informam as famílias em caso de óbito.

– Tenho a certeza de que a Vanessa dará conta do recado – concluiu o médico.

Após imprimir o documento, Luís Tiago despediu-se de Patrícia e seguiu para o consultório de otorrino. Pelo caminho ainda fez tempo no corredor, esperançoso de se cruzar com Vanessa, mas nada feito. De regresso aos seus aposentos, deitou-se na dura marquesa e cobriu-se com um lençol.

A descoberta de uma provável causa de morte, resultado de uma suspensão medicamentosa, ilibava-o completamente. Com os meios que tinha ao dispôr, a paragem era irreversível, logo nada poderia ter feito para alterar o desfecho. Já a incompetência demonstrada poderia ser um problema, caso chegasse aos ouvidos do diretor clínico. Luís Tiago seria despedido, o que não dava jeito nenhum. O hospital não pagava nada mal e as noites calmas permitiam descanso suficiente para conseguir estudar no dia seguinte.

As auxiliares não se deram conta de nada, isso seria pedir muito. Patrícia precisava mensalmente das receitas de antidepressivos e continuaria na sua, como se nada tivesse acontecido. Já Vanessa era pessoa para dizer tudo e mais alguma coisa. Não por malícia, mas sim pela sua honestidade de meter nojo e daquele “tudo pelos doentes”. Fê-la sentir-se cúmplice, a ver se ficava calada, mas isso até poderia ter o efeito contrário… 

A própria Vanessa também estava perdida. O plano de engatar a jeitosa, quase ao pé do desenlace, podia agora ser arrumado de vez. Paciência, enfermeiras há muitas. E estão sempre a contratar novas. Chega de ruminar, que à conta destas brincadeiras o dia já não irá render em termos de estudo.

Ao fim de alguns minutos Luís Tiago já dormia profundamente.

***

Vanessa desceu ao balneário feminino e tomou um banho de água gelada. Soube bem como nunca. Apenas a farda usada, que absorveu todo o esforço, ainda lembrava o que se tinha passado. Abriu a porta do roupeiro para pegar numa limpa e encontrou as prateleiras completamente vazias. Sem alternativa, tirou da gaveta ao lado uma farda azul-escura, bem bonita, destinada exclusivamente às médicas. Era justinha à volta da cintura e assentou-lhe mesmo bem. Soltou o cabelo e ficou a observar-se ao espelho. Algo faltava ainda. Pegou então numa bata pendurada no bengaleiro e trajou-a. 

– Era disto que gostavas nele, não era? Vá, admite!

Dra. Vanessa sorriu.

– Olha que não te fica nada mal. 

Contemplou o reflexo, imaginando uma brilhante carreira médica. Nesse futuro era ela que tomava decisões clínicas, dava ordens à enfermagem e discutia em pé de igualdade com os colegas. 

– Vais deixar isto e começarás uma vida nova.

Todas as suas preocupações recentes, incluindo o que sentia ou não sentia em relação ao miserável médico, eram agora desprovidas de qualquer significado.

Vanessa pendurou a bata no sítio e voltou a prender o cabelo com um elástico. De volta ao internamento, dirigiu-se para o quarto da falecida. O corpo coberto ainda lá estava. Ninguém se dera ao trabalho de o preparar para a morgue. Vanessa levantou o lençol e encarou pela última vez a enrugada face da senhora. Em seguida baixou-lhe suavemente as pálpebras.

K4 fechou para sempre os seus olhos, mas foi a tempo de abrir os de Vanessa.