Diana e o domingo

Inês Valdeste

Um automóvel vermelho subia a serra, alegrando um tudo-nada a monotonia eucaliptal. Acelerava nas retas, travava nas curvas, até ter parado no que parecia ser o meio do nada. A porta abriu e saiu uma mulher jovem de óculos redondos e carré cor de mel. Elegante no andar, desigual no vestir, mais estranha à paisagem que o próprio carro. Seguiu por entre as rochas, por um caminho que levava à nascente ali escondida. Olhou em redor para ver se estava sozinha, pôs as mãos em concha e provou a água fresca do manancial. De regresso ao volante, sorriu para o espelho retrovisor, ajeitando a franja. Ligou o leitor de música e percorreu a lista de favoritos até parar na Rhapsody in Blue de Gershwin, interpretada por Leonard Bernstein. Conferiu as horas e prosseguiu viagem.

Quando a tonalidade voltou a Si bemol maior, já o carro entrava na Vila. Ruas desertas, esplanadas arrumadas, farmácia central fechada — nada que espantasse ao alvor de um domingo. O edifício do centro de saúde parecia abandonado, na receção não havia ninguém. Escondido atrás da máquina do café, o administrativo selecionava moedas para pagar.

— Mau dia, Dra. Diana — disse o funcionário.

— Mau? — respondeu a médica. — Ora porquê?

— Já viu o dia lá fora? E nós por cá.

— É verdade. Que havemos de fazer? É o nosso trabalho. Pode ser que as pessoas aproveitem o bom tempo e seja um dia tranquilo.

O administrativo mexeu o café com um pauzinho de plástico, como se isso requeresse destreza, bebeu um pouco, franziu o cenho, e finalmente falou:

— Não me lembro de um domingo seu que tenha sido tranquilo. E olhe que já tem cinco fichas feitas.

Diana apercebeu-se de uma ténue cacofonia de vozes, espirros, choro de bebé e publicidade televisiva, tão bem abafada pela porta da sala de espera.

— Um a um, tudo há-de se ver — respondeu ela com o sorriso de quem aceita um desafio, e seguiu para o consultório.

O primeiro da lista era o antigo porteiro da casa, uma reminiscência do passado em que o edifício albergava um hospital com internamento e bloco operatório. Atarracado e calvo, o senhor emanava simpatia. Pediu licença para entrar, licença para se sentar, licença para perguntar quando é que a doutora iria de férias. Findos os salamaleques, foi ao que interessa:

— Trabalhei mais de quarenta anos nesta casa e sei perfeitamente para que servem as consultas ao domingo… mas vim mesmo em desespero! Então, é assim… Descobri que a minha carta caduca para a semana. Fui a correr para a clínica do Dr. Carvalho a ver se me arranjavam o atestado. Ao balcão tinha uma miúda magrinha, da sua idade. Disse-me que nem era preciso consulta, que ficava pronto no dia, só que ia custar metade da minha reforma… Tem algum jeito? Preciso da sua ajuda, doutora, senão vão me caçar a carta!

Diana não conteve o riso, valendo-lhe a máscara — um hábito adquirido desde a pandemia.

— De facto, consulta aberta não é para pedir atestados — respondeu num tom educativo —  mas sem carta também não pode ficar… Vamos lá medir as tensões, ver como está essa visão…

— Ó doutora, eu sabia! Eu depois trago-lhe um presente. Gosta de javali?

A médica ficou imóvel com o braçal do esfigmomanómetro na mão.

— Então a carta de caçador é que vai ser cassada?

O homem abriu os braços em resposta como se fosse algo evidente.

— Sabe, eu sou detratora da atividade venatória…

Se o significado daquelas palavras podia deixar dúvidas, a entoação não enganava.

— A doutora não imagina como o javali destrói as plantações! É que a besta tem tino! Para o apanhar, a gente cerca o monte…

Diana carregou no botão para medir a pressão arterial e fez sinal para não falar. O exame físico prosseguiu, mas não havia por onde pegar: tensão, coração e visão impecáveis, de fazer inveja aos mais novos. A médica assinou o documento, não sem a reprimenda: era o último que passava. De folha na mão, o homem desfez-se em apreços e prometeu três lebres graúdas, ficando desconsolado por ver as ofertas recusadas.

Seguiram-se gastrites, sinusites, tendinites, entre todas as outras ites, que mesmo não sendo urgentes, ao menos justificavam a vinda ao médico. Também houve consultas pediátricas, mais demoradas por causa dos pais. Uns questionavam toda e qualquer prescrição, outros não davam nada sem o médico ver primeiro. «Pingo no nariz há duas horas» foi um dos registos. 

Diana andou a bom ritmo e às onze menos um quarto a sala de espera estava vazia.

— Doutora, vamos ao cafezinho enquanto não vem ninguém? — apareceu à porta do gabinete a enfermeira Elsa. — Tomei um às oito e já estou a precisar do segundo.

— Vamos, sim. Deve ser a bonança antes da tempestade.

Elsa desesperava por uma ouvinte. Tinha de contar todas as peripécias que levaram a nova separação com o namorado, um rapaz de Travassos e não de Travassós, como diziam. Muitos pormenores, demasiados detalhes, ódios e desesperos. Diana acabou por perder o fio à meada, distraída pelo amontoado de gente que formou fila para tirar senha.

— Não acha que ele é parvo? — perguntou a enfermeira.

— Vistas assim as coisas… — a médica bebeu o último gole de café. — Será que o padre já terminou? É melhor voltarmos lá para dentro.

— Chegou o autocarro das onze… — concluiu Elsa.

Uns vieram com queixas: contratura muscular, crise de gota, reação alérgica. Outros vieram porque o açúcar, a tensão ou a temperatura subiu. E houve os que vieram porque sim: análises para ver, receitas para passar, faltas à escola para justificar. A sala de espera ia enchendo: por cada paciente visto apareciam dois por ver.

— Quando é que vai almoçar? — perguntou Elsa, quando as duas se cruzaram na sala de observações.

— Algures no espaço-tempo irei fazê-lo, mas para já não sei onde nem quando. Tenho demasiados à espera.

A consulta prosseguiu com cistites, amigdalites e bronquites que já deviam ter vindo há muito, intercaladas com as situações mais aleatórias: crise hemorroidária, espinha de peixe na goela, ataque de ansiedade, dor de dentes, bicada de galo, terçolho e mais um terçolho, ambos na pálpebra superior esquerda — uma autêntica birra da lei dos pequenos números. Por mais que Diana se esforçasse, não havia forma de dar vazão. Alguém até disse: «É deste tempo», e a médica olhou para os raios de sol projetados na parede do consultório.

— Doutora, temos aqui um poliarranhado — a enfermeira nunca batia à porta. — É só limpar e meter uma colinha, mas venha ver.

Foi o ponto de partida para a série de cortes, esfacelos e inchaços — frutos de um domingo bem aproveitado. Algumas feridas implicaram tratamento cirúrgico. Elsa sabia dar pontos, tinha habilidade, até gostava, mas «era melhor ser a doutora».

Após suturar mais uma testa, Diana saiu do gabinete de enfermagem e suspirou. Distraída, deu de caras com a sala de espera: indiferença, cansaço e revolta foi tudo o que encontrou. Apenas um velhote sorriu e acenou discretamente com a mão. Vestido com roupa de domingo, tinha ar de um bom avô. 

— Boa tarde, senhor Tinoco — cumprimentou Diana, quando chegou a vez do simpático septuagenário. — Já me estou a recordar de si… Não esteve cá assim há tanto tempo.

— Senhora doutora, tão bom vê-la de novo…

— Ali na sala — interrompeu Diana — sentada ao seu lado, era a sua esposa? Ela pode entrar, se quiser.

— Doutora, a minha mulher não gosta de hospitais. Não se preocupe, ela fica bem lá fora.

— Pronto, faça favor de se sentar… Ou, melhor, espere. O que o traz cá hoje?

— Não ando nada católico, outra vez os países baixos…

— A medicação que lhe passei não fez efeito?

— Abrandou no início. Depois voltou ao mesmo.

Diana apontou para a marquesa e foi calçar as luvas. Fez um exame genitourinário completo e minucioso, tal como mandam os livros de semiologia clínica.

— Já se pode arranjar.

— Dá para me pesar? — perguntou o velhote ao vestir as calças.

A médica concedeu a liberdade, sentou-se ao computador e começou a escrever.

— Aquela balança só pode estar avariada — comentou o homem, arrastou a cadeira e sentou-se. — Já a doutora tem muito boas mãos. São suaves, não magoam.

Diana fez de conta que não ouviu. Assim permaneceram: a médica a olhar para o ecrã e o paciente a olhar para a médica.

— Sabe, tive aulas de piano desde pequena — quebrou ela o silêncio sem tirar os olhos do monitor. — Diziam que tinha jeito. Certa vez fiquei em segundo num concurso de jovens talentos em Lisboa. Só não ganhei por causa de um dos jurados. Tocar não é martelar, disse ele, música não é só técnica. As mãos têm de ser delicadas para sentirem as teclas ou então o instrumento não nos irá sentir a nós. O que diria ele agora?

— Desculpe, doutora. Pode repetir?

— Estava a dizer que já pedi uma consulta de Urologia para ver essa próstata. Só tem de aguardar pela cartinha em casa. Aqui não vale a pena vir mais por este motivo. Não o conseguirei ajudar.

O formato da consulta mudou com o avançar da tarde: a conversa passou a ser curta, a avaliação dirigida, o registo lacónico. Finalmente, a sala começou a esvaziar.

— Veja lá se não prescreve medicação na veia, que daqui a nada vou embora — informou Elsa.

— Já vai? — questionou Diana, surpreendida. — Realmente… São vinte menos um quarto. Ainda há gente à espera. Em último caso dou uma injeção intramuscular.  

— E quem vai fazer o registo? O administrativo também já está a arrumar as coisas. Amanhã há mais.

— Eu improviso.

— Cada um sabe de si — rematou a enfermeira.

Diana olhou para a lista. Faltavam dez doentes.

— Maria do Sameiro — ouviu-se pelo altifalante da sala. — Gabinete quatro.

Enquanto esperava, tirou da mochila o seu cantil e bebeu de um trago a água da nascente. Com a azáfama da tarde até a sede caíra no esquecimento.

À porta do gabinete apareceu uma anciã de rosto queimado pelo sol, magrinha, curvada, com ar de quem ainda não largou a enxada.

— Senhora doutora, desculpe. É o meu home — disse a mulherzinha em bom montanhês. — Anda cada vez pior.

Do corredor chegava uma respiração pesada, algo maciço percutia o chão. Passado um bocado entrou um senhor forte, de bigode farfalhudo, com um bastão a antecipar os passos. Encostou o pau à parede, instalou-se na cadeira. A velhota deu a volta e sentou-se ao lado. Um cheiro a fumeiro inundou o consultório.

— E então? O que vos traz cá? — perguntou Diana sem ter a certeza para quem era a consulta.

— A gente tá aqui há seis horas, senhora doutora — lamentou-se a mulher. — Em casa os animais tcheiinhos de fome. Deu na cabeça ao meu home pa vir cá, mas eu, graças a Deus, ando rija.

— Deixa-me falar! — bradou o marido. Recuperou parte do fôlego e continuou: — Doutora, eu percebo é de campo, mas bem ela nom tá. Ao mei-dia nom dizia coisa com coisa. Tava a gente a comer — nada de mais, um caldico de couve galega… E entom deixa-me cair a colher na tigela. Olho pra ela e tá a escorregar pela cadeira. Amarrei nela. Quase demos um tombo! Nom sabia que fazer… Foi tchamar o vizinho, o Fernando. Nom tava. Quando voltei, vira-se ela pra mim: «Ó Manel, nom me apetece jantar». Não esperei mais. A gente mora aqui a dois quilómetros… Eram duas quando tchegamos.

Diana endireitou-se no assento, o brio regressou ao seu olhar. Começou a fazer perguntas e mais perguntas. A anciã não se lembrava do ano, mas sabia o dia, o mês, onde estava e até que comprimidos o marido tinha de tomar à noite. A médica mandou enrugar a testa, sorrir, mostrar a língua, levar o dedo ao nariz, deitar na marquesa, levantar perna esquerda, depois a direita, sentar, manter os braços estendidos, pôr-se de pé, fechar olhos, abrí-los, caminhar e rodar à volta. Palpou, percutiu, auscultou. Mediu tudo o que conseguia medir. Fez um eletrocardiograma, analisou, voltou a analisar e então disse:

— Não encontrei nada de anormal. Mesmo assim, vai ter de ir ao hospital fazer exames… Temos de perceber o que se passou.

— Nom diga isso, doutora. Daqui só vou pa casa…

— Cala-te, mulher — interrompeu o homem. — O que a doutora mandar, a gente faz.

Diana ainda esperou por uma objeção à palavra do marido e só então falou:

— Vou chamar os bombeiros.

Levou o casal à sala de observações e regressou ao gabinete. Sem mais demoras, marcou o 112. Apresentou-se, explicou a situação, indicou a morada.

— Vai falar com o INEM — respondeu um homem mal humorado.

Seguiu-se uma voz feminina gravada.

…Ligou para a emergência médica. A sua chamada será atendida de imediato. Por favor, não desligue…

Diana pôs em alta voz.

…If this is not a life-threatening situation and you just pretend advice, press «one»…

Farta de esperar, tirou os óculos, ligeiramente embaciados, e limpou-os com a ponta da bata. 

…Su colaboración es fundamental. Conteste de forma sencilla a las preguntas del operador…

— Tenho informação sobre uma emergência médica na Rua da Igreja Nova — respondeu uma operadora com sotaque brasileiro. — Que se passa aí?

— Boa noite. Mulher de noventa anos com alteração do estado de consciência durante a tarde. Precisa de transferência para o hospital.

— Isso não me diz nada. Para podermos ajudar, tem de ser clara na descrição e precisa na localização. Está a telefonar de um lar?

— Estou a ligar do centro de saúde. Não há como enganar.

— Não precisa de falar assim. Nome clínico da médica.

— Diana Bianchi Gama.

— É com quê de quá-quá?

— Não, não é! Isso para aqui não interessa. Ponha só Dra. Diana.

— Exaltar-se não ajuda ninguém. Pode passar-me a médica, por favor.

Diana expirou todo o ar que tinha.

— Já está a falar com a própria, minha senhora.

— Como? Oh… Me desculpe, senhora doutora. Não entendi, não entendi mesmo. Vai aguardar um bocadinho e de seguida já fala com um colega — e desligou antes que Diana tivesse tempo de responder.

Pela abertura da porta surgiu o perfil de Elsa.

— Só para dizer que me vou embora.

Diana acenou com a cabeça.

— Hoje nem veio assim nada de jeito…

Sem reação por parte da médica, a enfermeira fez um «chau-chau» com os lábios e fechou a porta.

— Viva, colega. Alexandre Cervo — cumprimentou uma voz calma do outro lado da linha.

Diana retribuiu a saudação, fez um apanhado da história e descreveu a sua observação.

— Temos então uma afasia e parésia transitórias — concluiu o homem. — E «transitório» é a palavra-chave.

— Sim, é isso — confirmou Diana. — Agora tem de fazer um estudo mais aprofundado no hospital.

Soou um martelar, tecla a tecla, ainda mais pausado que o discurso do médico.

— Quer enviar esta doente para o hospital… Com que objetivo?

— Bom… — Diana engoliu em seco. — A senhora necessita de fazer exames, pelo menos uma tomografia cerebral… É necessário excluir um quadro grave… Um acidente isquémico transitório, uma crise epilética, um tumor… Existem vários diagnósticos possíveis. Eu não tenho outra forma de a encaminhar. Os filhos estão emigrados, o marido não conduz. Não posso simplesmente mandar para casa…

— Num aspeto até concordo consigo  — a voz continuava paulatina, confiante.  — Pode ser um caso com algum interesse académico, isso sim.

Diana mordeu o lábio, desligou a alta voz e voltou a pegar no telefone.

— Vai mandar a ambulância, certo?

Ouviu-se uma assoadela.

— Sabe, eu tenho sessenta e seis anos, criei três filhos e já tenho netos. Deixei ir a minha mãe em paz não há muito tempo. Tenho uma visão da vida bem diferente da sua. Aposto que a menina ainda tem menos de trinta.

— Vinte e nove.

— Repare como a idade apura outros faros. Minha querida, vocês hoje saem com o canudo de mestre, mas esquecem-se que nós, licenciados, andamos cá há muito. Para acumular sageza é preciso tempo. Vocês seguem os algoritmos, fazem as coisas à luz da ciência, mas não encaram o problema como um todo. Imagine um jovem casal que passou uma bela tarde na cidade e vai a caminho dos confins de onde me está a ligar. A estrada é apertada, sinuosa, sem iluminação devida. Um despiste em noite de chuva não custa nada. Uma ambulância poderia salvar estas vidas, mas já foi requisitada por si para descobrir algo que ninguém irá tratar.

— Colega, eu estou a fazer o meu trabalho para esta utente em concreto, não tenho tempo para pensar em cenários hipotéticos. Se não quer mandar a viatura, diga-o sem rodeios.

— A decisão é sua. Joga com as brancas, tem mais peças e ninguém vê como mexe no tabuleiro. Há uma série de condições que nos obrigam a acionar a ambulância se vocês os referirem. Até agora não me disse nenhum. Vou dar-lhe uma última oportunidade. Diga-me um número à sorte, eu dir-lhe-ei o critério. Terá então toda a liberdade para justificar o transporte.

— Esta chamada está a ser gravada. Eu não vou inventar.

— O destino da senhora está nas suas mãos. Os juramentos já são consigo. Um número.

— Estamos na linha de emergência…

— Tenho isso presente, mas agora vamos acabar. Repita o número, que não ouvi bem.

Diana sentiu o calor invadir-lhe a face.

— Isto é ridículo… — conformou-se. — Três… 

— Dificuldade respiratória.

— Uff… Falta de ar não tem. Satura bem. Sem alterações à auscultação pulmonar. Quanto ao número de ciclos por minuto, não os contei.

— Está a ver? E mesmo assim, isso não tem qualquer importância! Cada ciclo respiratório apenas afasta o fim por um tempo indeterminado. A morte vai acabar sempre por triunfar, pois é esse o nosso destino desde o nascimento e tudo não passa de uma brincadeira sua até ficar saturada. Curiosamente, é aí que se dá a dessaturação final.

— Estamos aqui para adiar esse momento enquanto houver razão para tal.

— A menina nunca leu Schopenhauer, pois não?

— Chega de meninas e moças! Não vai mandar a viatura, pois não?

— Transporte recusado por ausência de critérios que o justifiquem — epilogou a voz com audível deleite.

Diana atirou com o telefone contra a parede. Deitou-se em cima do teclado e deixou-se ficar. De repente levantou a cabeça, pegou no aparelho e marcou a central de táxis. 

A viatura nem dois minutos demorou.

— São meus familiares — sussurrou ao taxista. — Isto deve chegar — e entregou discretamente uma nota de vinte.

Regressou ao edifício e trancou-se no gabinete. Só voltou a atender passado algum tempo, em modo auto-piloto. Emitiu baixas e atestados, inclusive para justificar uma falta a exame. Foi na conversa dos que vieram pelo antibiótico, mesmo não fazendo sentido. Até medicação crónica passou, «daqueles triangulares pequenicos, dos vermelhos redondos e dos branquinhos de dividir».

Uma chuva miudinha caía de algum lado. Despenteada e com o vestido amassado, Diana sentou-se no carro e desligou o leitor de música. Conduziu sem pressa, como alguém que não se sente seguro na escuridão. Ao descer a estrada deserta, reparou nas copas dos eucaliptos a refletir algo azul, cintilante e frio. Contornou a curva e foi então que viu tudo. Mesmo em frente à nascente havia uma confusão qualquer: viaturas da polícia e dos bombeiros, uma ambulância e um carro capotado no meio do mato.